terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Ritos iniciáticos galaicos: A caçaria selvagem e os deuses escuros.



Por David Outeiro 

1-Ritos inicíáticos dos caçadores-guerreiros no NO peninsular: A origem da caçaria selvagem
  
É uma noite fria de inverno e como desde o principio dos tempos o povo reúne-se a carão do lume. O fogo da lareira ilumina o rosto dos presentes que acodem para se sentarem no escano mais uma vez. Ao longo desta polavila começam a surgir as historias e as lendas que os vizinhos contam. Compartilha-se comida e bebida enquanto as horas se vão passando nesta longa noite de inverno. Mas num ponto da noite já avançada, alguém toma a palavra. Repentinamente irrompe o silêncio, só perturbado pelos rangidos da lenha ardendo...as palavras pronunciadas referem-se à Santa Companha. Continua a narração enquanto todos escutam atentos e com os olhos bem abertos. Um homem velho fala do encontro...Mas não será o único no transcurso da noite na que falarão de aparições de comitivas perigosas, de grandes seres de olhos de lume e do caos do transmundo. Este acontecimento pôde acontecer em qualquer lugar da Galiza e pode que Vc., caro leitor, participasse numa destas reuniões ao redor da lareira. Eu escutei uma destas historias que como um facho fazem prender o lume da nossa alma e que nos leva a começar a Procura...assim, com maiúscula. Esta procura tem novas ferramentas e novos métodos que nos permitem rastrejar um velho enigma. Começamos pois, uma viagem de milhares de anos ao passado seguindo as pegadas da companhia...

Faz milénios, na velha Kalláikia, os caçadores da tribo teriam de passar um rito de iniciação. Este rito implicava a caça dum animal mas também o contato com o Além e o renascimento do caçador ou guerreiro. Os xamãs já chegaram a um amplo conhecimento da mente e dos ciclos da vida pelo que os caçadores iniciados aproveitaram uma destas capacidades. Com certas técnicas de transe extático, os caçadores poderiam desencadear uma força selvagem e depredadora que os levava a perseguir a sua presa até o Além. Esta mensagem pode estar codificada em múltiplos petróglifos da Idade do Bronce. Posteriormente, os galaicos continuariam com os ritos iniciáticos relacionados com as saunas e o trânsito e adquisição de certas capacidades. Encomendados a divindades escuras como Bândua, eram capazes de desencadear tal furor que acreditavam que podiam se transformarem em lobos ou ursos. Estas fratrias de guerreiros chegariam a ser similares aos Berserker ou Ulfhednar...ou os Einherjar; guerreiros eleitos por Odin para formar parte das suas tropas na batalha final do Ragnarok. Vinculados os guerreiros dirigiam-se ao Além no final dos seus tempos. É por isso que ainda hoje há quem assegura ouvir os ecos de essas escuras divindades e dos seus guerreiros que fazem a sua aparição na noite. A companha, a estadeia, a hoste e inclusivamente certos santos ou crenças relativas aos lobishomens são a pervivência destas crenças tão longínquas. Damos começo a nossa viagem...
Por todo o NO peninsular distribuem-se múltiplos petróglifos com um motivo recorrente. Grandes cervídeos, peças de caça que seriam a inveja de qualquer caçador, aparecem em múltiplas gravuras. Os cervídeos associam-se com vários motivos tais como espirais, reticulados, laberintóides e antropomorfos. Em muitos destes gravados aparece um ídolo-cilindro que semelha estar supervisando os acontecimentos. Analisando as gravuras, muitos especialistas chegaram a uma conclusão da que falaremos, mas com uma nova olhada e matizes.
Através da história, o homem estabeleceu uma serie de rituais entorno a certos períodos de idade ou a aceitação de certos indivíduos em certo grupo ou função dentro da sociedade. Este tipo de rituais são conhecidos como ritos de passagem ou ritos iniciáticos. A passagem ao xamanismo é um claro exemplo de iniciação já que no rito iniciático o futuro xamã deverá passar um transe no que alcançada a êxtase alcança a dar-se conta da sua morte, a morte do seu anterior ego. Após esta morte e ruptura com o passado, o xamã adquire certas capacidades que porá ao dispor do seu povo. O rito iniciático levado a cabo pelos caçadores-guerreiros galaicos da Idade do Bronze tem  a ver com a morte e renascimento mas neste caso trata-se dum renascimento de integração num grupo determinado e vinculado a um deus.

Um rito iniciático conhecido e similar é levado a cabo pelos guerreiros Massais. Para os Massais o consumo de carne de animais caçados é visto como algo de baixa categoria ou indicativo de pobreza. Por causa disso esta etnia africana só costuma caçar como treinamento para a guerra. Exceto em casos de necessidade. O rito iniciático dos guerreiros Massais, consiste na caça dum leão pelo menos uma vez na sua vida. Os guerreiros partem em pares junto com o seu melhor amigo, a quem lhe confiam a vida. Após localizarem o rastro dum leão macho, os futuros guerreiros deverão enfrentar-se a ele. Os guerreiros que adquirem maior protagonismo são os que lhe provocam o primeiro sangue e o que lhe corta o rabo enquanto ainda está vivo. O primeiro fica com o cabelo do leão e o segundo com o rabo. Uma vez terminado o período guerreiro, os dous protagonistas poderão formar parte do conselho do clã.

Este tipo de ritos teriam lugar entre os galaicos, mas com um estilo indo-europeu e acho que com supervisão dos xamãs. Se reparamos nos petróglifos vemos que os grandes cervídeos -animais que têm de ser caçados como trofeu pelo caçador-guerreiro-, estão vinculados a espirais, reticulados e laberintoides. Esta simbologia remete-nos aos estados alterados de consciência...mas pode que não estejamos a falar de cenas xamánicas. Os caçadores indo-europeus, igualmente do que os caçadores de outras latitudes através dos tempos, tinham certas ferramentas para resistir durante as jornadas de caça. No contexto indo-europeu essa ferramenta era a Amanita Muscaria, um fungo bem conhecido pelas suas propriedades enteógenas. Este tipo de substâncias atuam em função do indivíduo, não se tem uma experiência única. É por isso, que um indivíduo autosugestionado, poderia empregar a Amanita como potenciadora de certos efeitos desejados. Este fungo tem a capacidade de incrementar a atividade sináptica e de provocar euforia e excitação. Provoca visões mas os caçadores viam neste fungo uma ferramenta muito válida para incrementar as suas capacidades físicas. 

Isto podemo-lo ver numa narração siberiana dos Koriacos em relação ao mito do primeiro herói Grande-Corvo. Diz o mito que o Grande-Corvo captura uma baleia mas não tem suficientes forças como para levá-la voando. É por isso pelo que invoca ao deus Vahiyinin (existência) e diz-lhe que vá a certo lugar e coma os espíritos wapap para obter a força necessária. Vahiyinin cuspe sobre a terra e saem pequenas plantas com sombreiros vermelhos, a saliva do deus converte-se em pequenos pontos brancos...Estas plantas são os wapap. O Grande-Corvo come os wapap (é a Amanita) e consegue força para suster a baleia. Outro dado interessante é que os deuses Júpiter e Hércules recebiam o nome popular de "muscário" relacionado com o mesmo fungo. Estas divindades são fortes e a sua fortaleza está vinculada com os efeitos da Amanita.

Os indo-europeus conheciam portanto os efeitos do fungo, que levavam nos seus cintos de caça. Segundo Elisa Guerra Doce (Las drogas en la prehistoria p.222): 
"Dispomos dum grande número de informes antropológicos que demostram o consumo de Amanita Muscária por parte dos caçadores de Sibéria e Kamchatka durante as suas jornadas cinegéticas para combater a fadiga (Saar, 1991, en Ott 1996a). (...).Estes grupos paleo-siberianos costumam levar consigo vários exemplares de mata-moscas (Amanita) secos, ensartados numa correia de couro que pendura do seu cinto, que consomem para potenciar a sua força, como se recolhe nos escritos de V. G. Bogoraz, um antropólogo russo de começos do século XX (Wasson, 1968: 273-274). O "homem dos gelos" achado a começos dos anos noventa nos Alpes portava uma correia similar com dous restos fúngicos identificados ambos com o fungo do vidoeiro (Piptoporus betulinos) (Spindler, 1995:161-162), o que levou a alguns autores a propor que houvesse levado também espécies fúngicas alucinógenas que pôde consumir num intento infrutuoso de evitar a fadiga (Ott, 1996a: 357 nota 13), algo que por enquanto não pôde ser contrastado).

A Amanita era um sacramento vinculado a certas divindades ou animais, com relação entre eles. Algo similar acontece entre os Huichol, que empregam o cactus peiote.

Para os Huichol, o cactus deve de ser caçado por estar vinculado ao cervo, e é por isso que durante a sua recoleção lhe jogam frechas. Para os Huichol o cervo e o peiote são descendentes do Sol "Tau". Os Taraumaras, outro povo que emprega o peiote, são conhecidos por ser dos maiores atletas do mundo. Realizam carreiras rituais nas que consomem peiote e durante as que chegam a percorrer centos de km. Inclusivamente caçam as suas presas perseguindo-as. Perguntamo-nos por isto, se a Amanita poderia estar vinculada para os indo-europeus ao cervo e ao Sol, dum jeito similar ao peiote entre os Huichol. Há uma referência com respeito ao Soma dos Vedas (feito com Amanita) da Índia que nos interessa;

"Como cervo sedento, vem cá a beber, bebe todo o soma que queiras, uriando dia após dia, oh! Generoso! Assumiche a tua força mais poderosa!"
(INGALLS,1971)


Temos de reflexionar sobre certos petróglifos com soliformes associados ao cervo. Em palavras de D. Luís Monteagudo:

"Es probable que muchos de los círculos concéntricos de los petroglifos gallegos sean símbolos solares y su origen sería la espiral (que aunque más escasa también aparece en los petroglifos), esta espiral (que en el occidente de Europa ya aparece en las pinturas aurignacenses y en el “passage grave art” irlandés) representaría la secuencia de trayectorias descritas en cada periodo del año (probablemente 7 meses cálidos y 5 fríos o 6 y 6 ) por el sol que cada día (y por tanto más visiblemente cada mes) va cambiando sus puntos de nacimiento y puesta y en consecuencia su trayectoria más hacia el N."
Pois bem, o cervo é um animal vinculado ao sol, um animal solar, mas solar psicopompo, decadente. Citando novamente a D. Luís Monteagudo

“[…] que los “soles” de los petroglifos en general están situados demasiado bajos, no en posición alta, protectora y dominante como era de esperar y el cuenco de la Carolina lo comprueba. Esta perdida del nimbo, tan expresivo de la benéfica acción solar, y de la falta de colocación y agrupación apropiadas de los “soles” en los petroglifos pontevedreses pudiera”.

A vinculação do cervo com o sol e o seu caráter psicopompo (condutor de ánimas ao Além) é clara. Mas estará o cervo vinculado a uma divindade e a Amanita?. Se observamos os petróglifos, podemos ver a presença do chamado ídolo-cilindro. Esse ídolo-cilindro que aparece na Galiza da Idade do Bronze representa-se no Sul da P. Ibérica com grandes olhos, com grandes pupilas...pupilas dilatadas. Quer dizer, estes ídolos têm midriase, dilatação pupilar, efeito que produzem certos enteógenos. E temos a prova de que esse ídolo com midriase está vinculado, com efeito, a ditas substâncias e a cervos. Num copo achado na sepultura Nº15 de Los Millares, aparece a representação destes dous olhos com pupilas dilatadas junto com cervídeos e símbolos entópticos como os produzidos durante um estado alterado de consciência. 

Representações similares existem na cultura TRBK da Dinamarca assim como em certos ortostatos irlandeses. O vaso de Los Millares tem de estar vinculado a ingestão de enteógenos estimulantes, posto que outras substâncias (p.ex ópio) provocam miose, quer dizer, contração das pupilas. Similar uso puderam ter os  "vasos campaniformes" presentes em vários pontos de Europa, entre eles o NO peninsular Ibérico.

Os Koriacos de Sibéria vem clara a relação das renas com a Amanita e no caso dos Huicholes é o cervo com o peiote. O fungo emerge no Outono, mas o seu consumo pode-se produzir em qualquer época do ano, sendo complexa uma relação do ciclo do cervo/fungo/rito iniciático. A época mais propícia do ano para a localização dos grandes machos cervídeos é num período amplo que a dia de hoje, mas com variações, compreende agosto e setembro. Neste período começa o tempo de cio conhecido pelo bramido que emitem os cervos machos. Durante este tempo, os cervos lutarão pelas fêmeas, sendo os machos mais fortes e válidos os que podam copular. Mas o seu bramido  pode-os descobrir. O homem pode localizar ao cervídeo mais faclmente num período no que é mas suscetível de ser caçado. No calendario  gaulês de Coligny, o mes 10 (julho-agosto) recebe o nome de ELEMBIV[IOS] que faz referência ao cervo ou veado (em irlandês é Elit). Voltando ao ciclo do cervídeo, podemos ver que está próximo à saída das Amanitas no Outono. O período mais propício para um ritual iniciático que implicasse caçar um cervo é do meu ponto de vista na época do cio e portanto usando Amanita Muscaria. 
Mas a Amanita pôde ser recolhida com anterioridade já que é necessario secá-la para diminuir uma substância tóxica chamada muscarina e assim transformar o muscimol enteógeno numa substância mais potente: o ácido iboténico. Não podemos deixar de reflexionar -isso sim-, sobre proximidade do mês gaulês do cervo ELEMBIV(IOS), o cio dos cervídeos e a saída da Amanita muscaria.

Temos mais evidências de que os caçadores-guerreiros iniciados entravam num transe extático. Voltando de novo as gravuras associadas aos cervos vemos a existência de reticulados, que são visões produzidas num estado alterado de consciência desde as primeiras fases. Mas também outros símbolos como espirais fazem-nos referências ao mesmo. Mas...e se lhe perguntamos a um xamã, qué é o que vai dizer?. O antropólogo Geraldo Reichel-Dolmatoff mostrou-lhe símbolos similares aos representados nos petróglifos (e certas gravuras neolíticas) a um xamã tucano. Nesta caso tratava-se de espirais, círculos concêntricos num nível e na parte superior espirais dobres laterais com curvas esticadas entre elas. Yebá, o xamã, diz ao respeito que se tratava duma porta Isso mesmo representam, segundo alguns autores, muitos petróglifos galegos: portas ao Além. Acho que essas representações também podem ser exemplos de magia simpática que tinha por objetivo influir sobre a caça e fixar os animais-espírito na rocha.

Em muitas narrações célticas, descrevem-se caçadores que vão perseguindo uma presa, habitualmente um cervo ou javali. Esta presa, leva-os finalmente ao Além, quiçá por vontade divina. Os estados alterados de consciência produzidos pelos enteógenos como a Amanita Muscaria, eram interpretados pelos xamãs e guerreiros como um méio de viajarem ao além. O transe era a via  e a êxtase era a chegada a este mundo. Por isso os animais perseguidos por caçadores-guerreiros num transe extático eram relacionados, junto com a sua vinculação ao sol decadente e psicopompo, ao Além.

Mas neste transe extático, o caçador-guerreiro converte-se obviamente num depredador, mas não humano. Podia-se "transformar" em lobo. No caldeiro de Gundenstrup podemos ver como o deus Cernnunos afasta os animais solares dos perigosos ctónicos. O caçador deveria converter-se num animal ctónico, perseguir ao animal solar psicopompo traçando um vínculo e finalmente passar a prova. Após passar a prova, o caçador-guerreiro renasceria ao seu novo ser.

Mas quem era esse deus a quem se vinculavam? Continuaram os ritos iniciáticos? que têm a ver os berserker, Odín e Ogmios em todo isto?. No próximo capítulo continuaremos com esta procura que nos está a levar aos exércitos da noite e aos deuses escuros. Mas também achegaremos mais evidências provenientes de epítetos relacionados com Bândua, o deus da guerra galaico, dados das fontes Irlandesas e nórdicas que nos remetem ao transe extático que experimentavam guerreiros como Cuchulainn ou os berserker e ulfhednar vinculados a Odín.







Segundo André Pena Granha:
EL TEMA DE LA “CAZA SALVAJE” EN LOS PETROGLIFOS GALLEGO


1 comentário:

André Pena disse...

Parabéms caro David
um meu enfoque complementário do tema da caça selvagem em os petróglifos galegos


http://www.riograndedexuvia.com/CAZA%20SALVAJE.pdf

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